Fernando Menegat*


Foi publicada, no  dia 26/10/2021, a Lei n.º 14.230/2021, que altera sensivelmente os dispositivos da Lei n.º 8.429/92, conferindo novo regime às ações ajuizadas para sanção de atos de improbidade administrativa no Brasil.

Muitas normas da novel legislação merecem destaque – certamente, todas serão alvos de intensa produção acadêmica. Neste texto, pretende-se enfocar apenas a discussão intertemporal que naturalmente decorre de toda e qualquer regulamentação legal inédita: as novas regras valem para ações de improbidade já ajuizadas?

Em primeiro lugar, em relação às normas da Lei n.º 14.230/2021, (doravante a “nova” LIA) que carregam conteúdo processual – tais como a reformulação dos artigos 16, 17 e 18 da lei original, e a inclusão de dispositivos como os arts. 17-C e 18-A –, é evidente sua aplicabilidade imediata a todo e qualquer processo em curso, no estágio em que se encontra o feito e desde que respeitados os atos já realizados e os efeitos por eles produzidos sob o regime da legislação anterior. Trata-se, afinal, de entendimento jurisprudencial já consagrado, e positivado no art. 14 do CPC.

De outro lado, a discussão mais problemática parece mesmo residir nas normas da nova LIA (Lei de Improbidade Administrativa), de conteúdo material, ou seja, que tratam dos critérios para configuração dos atos de improbidade, das regras de sancionamento, dos prazos prescricionais, etc. Anteveem-se muitas discussões na doutrina, na jurisprudência e nos órgãos de controle acerca de tal ponto.

Para esses casos, em nossa visão e sem rodeios, a “metanorma” do art. 1.º, §4.º da Lei n.º 8.429/92, na redação conferida pela nova lei, traz resposta clara e inequívoca, ao afirmar: “Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

Ora, à medida que o sistema de improbidade passa a estar expressamente enquadrado na moldura do Direito Administrativo Sancionador, os princípios e as regras deste sub-ramo do Direito Administrativo têm incidência inequívoca e obrigatória na interpretação e aplicação da nova LIA. E, dentre esses princípios está, justamente ao lado de outros como a vedação ao bis in idem e o dever de proporcionalidade das sanções, a retroatividade da norma sancionatória mais benéfica, extraída de analogia com o Direito Penal, outro ramo do Direito acostumado com reflexões de índole sancionatória[1].

É dizer: na esteira do regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador, aplicável expressamente à nova LIA por força do art. 1.º, §4.º da atual Lei de Improbidade Administrativa, normas materiais que regem a improbidade administrativa devem retroagir e incidir desde já às ações em curso sempre que mais favoráveis à esfera do réu. Conjugada com a interpretação da cláusula do due process, que amplia analogicamente o substrato de incidência da garantia fundamental consagrada no art. 5.º, inciso XL da Constituição, a norma do art. 1.º, §4.º da nova LIA torna assente de dúvidas (mais do que isso, torna cogente) a incidência do princípio da retroatividade em matéria de improbidade.

Tal conclusão torna, por exemplo, imediatamente aplicáveis aos processos de improbidade em trâmite, as redações conferidas pela nova lei aos artigos 1.º, 3.º, 9.º, 10, 11 e 12 da Lei n.º 8.429/92, visto que a novel regulamentação de tais artigos é, claramente, mais benéfica aos acusados por improbidade.

Vale consignar que, se há ou não exageros (para um ou outro lado) em dispositivos da nova LIA, trata-se de ponto que não é aqui alvo de enfoque – o presente artigo não pretende tecer comentários gerais à novel regulamentação. O que se quer afirmar é que, se o Direito Administrativo Sancionador efetivamente configura microssistema aplicável à interpretação e aplicação da nova LIA, então, o princípio da retroatividade da norma sancionatória mais benéfica deve incidir, e todos os dispositivos da lei posterior que forem tidos por mais benéficos (quer sejam reputados extravagantes ou não) devem atingir os casos ajuizados. Críticas ao conteúdo de tais normas materiais podem existir, e devem ser formuladas nas vias processuais cabíveis; no entanto, o fato de não se concordar com o conteúdo de uma norma não pode impedir sua aplicabilidade imediata, quando o ordenamento expressamente orienta que assim o seja.

Em verdade, o desfecho acerca do ponto ora problematizado configura importante prova de fogo acerca da maturidade teórico-prática do Direito Administrativo Sancionador no Brasil: ou tal ramo está consolidado, e bem assim seus princípios e regras setoriais conformam regime jurídico incidente e cogente; ou o “DAS” ainda pende de sistematização e de ser encarado com a seriedade que merece, e seguirá sendo alvo mais de discussões teóricas do que de efetiva implementação na realidade.  

Fernando Menegat, advogado em Curitiba/PR, Doutorando em Direito Administrativo na USP, Mestre e Graduado em Direito na UFPR, Professor de Direito Administrativo da Universidade Positivo (Curitiba/PR).