Brasil precisa agir para conter a adultização e proteger crianças no ambiente digital
Fenômeno potencializado por algoritmos e monetização nas redes sociais exige novas regras, responsabilidade das plataformas e ações de educação digital. Especialista alerta para danos irreversíveis na infância e propõe medidas urgentes em entrevista exclusiva ao Congresso News
A discussão sobre a adultização de crianças e adolescentes ganhou força no Brasil após a repercussão de um vídeo do influenciador Felca, que denunciou casos de exploração e sexualização precoce de menores nas redes sociais. O conteúdo, que ultrapassou 30 milhões de visualizações no YouTube, mobilizou parlamentares e despertou um debate nacional sobre a necessidade de novas leis para proteger a infância no ambiente digital.
Para o advogado Renato Rocha, fundador do projeto Justiça Para Todos, o momento é de urgência. Em entrevista ao Congresso News, ele analisa as lacunas jurídicas, a responsabilidade das plataformas e das famílias, e aponta caminhos para transformar a comoção em mudanças concretas.
Congresso News – Como o senhor define a adultização no contexto das redes sociais e quais são os riscos mais graves para crianças e adolescentes?
Renato Rocha – A adultização é a exposição precoce de crianças e adolescentes a práticas, conteúdos e expectativas do universo adulto, incluindo erotização, uso comercial da imagem e situações vexatórias. No ambiente digital, essa prática é potencializada por algoritmos que privilegiam o engajamento a qualquer custo. Isso desloca a infância de seu lugar de proteção integral, produzindo efeitos no desenvolvimento socioemocional e aumentando a vulnerabilidade a assédio e exploração. O debate ganhou urgência porque a dinâmica algorítmica amplia o alcance desses conteúdos e dificulta a fiscalização estatal no ambiente pulverizado das plataformas.
CN – A legislação brasileira atual é suficiente para enfrentar o problema ou são necessárias novas normas?
RR – O Estatuto da Criança e do Adolescente oferece um arcabouço robusto, mas foi criado num mundo anterior às plataformas digitais. Hoje faltam regras claras para monetização envolvendo menores, deveres de transparência algorítmica e protocolos de retirada rápida de conteúdo. É necessário atualizar a proteção integral com normas específicas para o ambiente online, mantendo o ECA como base.
CN – Até que ponto as plataformas devem ser responsabilizadas?
RR – As plataformas digitais devem ser corresponsáveis. Atualmente lucram com o engajamento que conteúdos geram, mas não podem terceirizar aos usuários o dever de cuidado com crianças. Defendo que haja deveres legais explícitos, avaliação de risco voltada à infância, detecção proativa de padrões de exploração, auditorias independentes e mecanismos efetivos de denúncia e resposta.
CN – E qual é o papel das famílias nesse processo?
RR – A família é a primeira barreira de proteção, mas precisa de orientação. Há casos em que responsáveis, por desconhecimento ou incentivo, expõem a criança visando monetização. Políticas públicas devem combinar educação midiática para pais e filhos, canais de denúncia acessíveis e apoio psicossocial.
CN – Quais são as lacunas jurídicas mais urgentes?
RR – Três lacunas se destacam. O uso da imagem de menores quando o titular da conta é o responsável. A governança de algoritmos que amplificam conteúdos nocivos. A monetização e publicidade envolvendo crianças. Esses pontos precisam de regulamentação específica.
CN – Que medidas o senhor considera prioritárias?
RR – Proibir publicidade direcionada a crianças, vetar o perfilamento comportamental para fins comerciais, restringir a monetização de perfis com participação de menores, obrigar avaliações de risco e auditorias algorítmicas e instituir prazos claros para remoção e prevenção de reenvios. O PL 2628 de 2022 já é um avanço importante nesse sentido.
CN – O fenômeno atinge de forma desigual meninas e meninos?
RR – Sim. Meninas, especialmente as negras, sofrem hipersexualização precoce em um contexto de racismo estrutural e desigualdade. É essencial reconhecer essa interseccionalidade, prever agravantes específicos e promover políticas que rompam estereótipos.
CN – Qual o papel de projetos sociais no enfrentamento ao problema?
RR – Projetos como o Justiça Para Todos são fundamentais para oferecer educação midiática, orientação jurídica, apoio a vítimas e articulação de redes de denúncia. Essa atuação aproxima o direito da vida real e fortalece a mobilização social.
CN – Como equilibrar a liberdade de expressão com a proteção de menores?
RR – A liberdade de expressão é um pilar democrático, mas a Constituição determina prioridade absoluta à proteção da infância. O equilíbrio exige regras claras que diferenciem conteúdos legítimos de exploração e que imponham deveres de cuidado às plataformas.
CN – Que mensagem deixa para pais, educadores e formuladores de políticas?
RR – Cada visualização de conteúdo nocivo tem custo humano. O ECA completa 35 anos lembrando que a proteção integral é dever da família, da sociedade e do Estado. A hora de agir é agora.
CN – Como o senhor avalia o impacto do vídeo de Felca?
RR – Foi um divisor de águas. Trouxe casos concretos, expôs a economia do engajamento e levou o tema para além das telas. Isso gerou novos projetos na Câmara e compromisso público de pautar propostas.
CN – Essa repercussão pode acelerar mudanças?
RR – Sem dúvida. A mobilização aumentou o custo da inação e abriu uma oportunidade política para implementar mudanças reais nas políticas de moderação.
CN – O que é necessário para transformar a comoção em medidas concretas?
RR – Aprovar um pacote mínimo com proibição de perfilamento e publicidade para menores, restrição de monetização, avaliação de risco obrigatória, auditoria independente e prazos claros de remoção. Também é essencial financiar educação midiática, criar botões de alerta e adotar protocolo unificado de denúncia e bloqueio rápido de perfis reincidentes.